quarta-feira, 16 de julho de 2008

A Farpa de Bénard da Costa

Não fui suficientemente claro no meu desacordo sobre a posição adoptada pelo director da Cinemateca Portuguesa sobre a Cinemateca no (do) Porto. Não quero ser confundido como um prosélito de Bénard da Costa, em virtude do meu último post lançar hossanas ao seu texto escrito como resposta às críticas extemporâneas de Pires de Lima, mulher que ocupou o cargo que lhe permitia fazer o que reclama, agora ex-ministra, para a cidade Invicta. Sem duplicação de argumentos, deixo a palavra a quem melhor uso faz dela, sobre a forma como todo este imbróglio tem sido conduzido e, à qual, eu subscrevo por inteiro.

O seguinte texto pode ser lido no sítio original aqui.


«Sexta-feira, 6 de Junho de 2008
Falando da Cinemateca


Agora que justamente se volta a falar de uma "Cinemateca Portuguesa" que de facto é propriedade privada do seu director, e um exemplo de nepotismo, é-me forçoso recordar o que há dois anos escrevi.

Falando de Cinemateca, é impossível ignorar a questão directiva em aberto.

Se todas as questões estritamente personalizadas podem sempre ser redutoras, senão mesmo armadilhadas, esta então, pelas características da pessoa de João Bénard da Costa, ainda mais o é – por se tratar de um alto dignitário do Estado, ainda há pouco reconfirmado pelo presidente Cavaco como presidente da comissão organizadora do Dia de Portugal, e porque indiscutivelmente é a pessoa que, pelo seu saber, escrita e capacidade de transmitir a paixão por filmes, é o epítome público da “cinefilia”. Para mais as circunstâncias, com desastrosos governantes da cultura e nomeações indigentes, são de molde aos mais justificados receios.

Tudo isto recordado, também há a dizer que a montagem de um “affaire Bénard”, qual decalque do “affaire Langlois” que em Março de 1968 foi o prelúdio do Maio francês, é ridícula. Se é incontornável a questão pessoal, é também porque há a discutir a permanência de um modelo de cinemateca que estritamente identifica uma pessoa com a instituição

João Bénard da Costa ainda teve o privilégio e a capacidade de contar com o apoio de Henri Langlois, o fundador da Cinemateca Francesa. “O homem da cinemateca”, na imagem clássica de Langlois, era o guardião dos arquivos e o transmissor do amor pelos filmes, a cinemateca sendo um lugar de peregrinação e culto. Esta concepção não pode resistir a um entendimento pelas políticas culturais públicas e democráticas do que é e deve ser uma instituição estatal.

Eu frequento a Cinemateca e tenho tentado seguir com atenção crítica a sua programação, bem como os seus perfis públicos; não iria agora escamotear que entendo que não se afastou basicamente do que há de mais conservador, nostálgico e necrófilo no modelo tradicional desse tipo de instituições. E seria incoerente não me manifestar perante uma “excepção” a regras para as instituições culturais públicas, e de reservas perante o designado mesmo “regime excepcional”, além do limite geral de idade em cargos público – não posso aceitar que se sustente que um qualquer cargo público é “vitalício” [ou, acrescento agora, quando o detentor do cargo só se retira depois de, qualquer monarca, ter ele próprio designado sucessor].

João Bénard fez crer que “aprés lui, le déluge”. Se será sempre muito difícil suceder a tão carismática personalidade, a dificuldade foi acrescida pelo modo como ele semeou o deserto à sua volta. Desde Maio de 2003 que não há responsável do Departamento de Programação (é o próprio Bénard quem exerce o pelouro), e em Outubro passado, depois de não se ter efectivado em Maio a substituição que era das regras, a Cinemateca ficou mesmo durante meses sem vice-presidentes, pela demissão de José Manuel Costa e pela reforma antecipada de Rui Santana Brito.

Que a instituição se chame Cinemateca Portuguesa é mesmo ficcional. Protocolos com instituições não são cumpridos, cineclubes e outros bem podem pedir cópias, e qualquer governante que já tenha tido a tutela sabe que o obstáculo intransponível a uma programação no Porto, na Casa das Artes, tem sido o próprio presidente Bénard.

Mais: há anos a Cinemateca adquiriu direitos de uma importante colecção à Hollywood Classics, que permitia ter um acervo considerável de cópias susceptível de circulação pelo país, e que afinal ficaram na gaveta, num acto lesivo do interesse público, financeiramente inclusive.

Do mesmo modo, quando a Cinemateca reabriu nas suas instalações (horrorosamente renovadas numa “apropriada” revisitação de “uma casa portuguesa”), em Janeiro de 2003, foi prometido que em breve haveria também novidades para a sala do Palácio Foz, aos Restauradores, onde tinha estado transitoriamente sediada – e continua-se à espera*, o argumento tendo servido para, na posse dessa sala, o presidente Bénard a manter fechada, inviabilizando outros projectos que, cioso, viu como “concorrenciais”.

Se compreendo algumas das emoções que a eventual saída de João Bénard suscitou e tenho noção do seu reconhecimento internacional, também verifico que muitas dessas “emoções” provêm de quem manifestamente nunca põe os pés, ou os olhos, na Cinemateca.

"Público" 27-04-06

*Por coincidência, uns tempos depois deste texto ter sido publicado, a Sala do Palácio Foz reabria enfim como "Cinemateca Júnior", com uma - uma única - sessão semanal.

Na altura, um abaixo-assinado que mais se assemelhava a um conclave de "grandes famílias" fez recuar o MInistério da Cultura naquilo que não era mais que um caso de limite de idade, de acordo com a lei geral. Agora, inesperadamente atenta, a própria titular de então, Isabel Pires de Lima, vem fazer no "Público" de hoie a constatação de que "É sabido que a CInemateca é de há muito propriedade de J.B.C. [João Bénard da Costa](...) O autismo que caracteriza aquela instituição decorre do autismo de J.B.C. que seca todos os recursos humanos competentes que porventura tem ou teve" - arguto diagnóstico, mas fraca memória, omissa que é Pires de Lima sobre o seu recuo de há dois anos.

O mais importante e evidente no momento é ser mais que justificado um pólo da Cinemateca no Porto (que Bénard, cioso da sua "propriedade", enjeita) e as razões para subscrever o abaixo-assinado reclamando-o.»

Texto escrito por Augusto Seabra

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