quarta-feira, 16 de julho de 2008

A Farpa de Pires de Lima

Apesar de criticar a sua falta de apoio explícito e visível à criação ou desenvolvimento de uma extensão ou pólo ou o que lhe queiram chamar da Cinemateca Portuguesa no Porto, curvo-me quantas vezes for preciso face à inteligência, erudição, cultura e resultados obtidos por Bénard da Costa no seu trabalho na Cinemateca. Não há nada a acrescentar em relação a isso. Mas, gostaria de deixar aqui, para bálsamo da minha consciência, a sua resposta às críticas ridículas feitas por Pires de Lima, já ex-ministra, sobre o director do Museu do Cinema e o seu labor na dita instituição. Será preciso recuar até às "Farpas" de Queiroz e Ortigão (bastante conveniente já que Pires de Lima é uma "reconhecida" Queirosiana) para encontrarmos algo do género, tão brilhantemente escrito, ficando demonstrado, desta maneira, como se destrói a credibilidade política e intelectual de qualquer pessoa. Via cine-australopitecus.blogspot.com, transcrevo descaradamente o texto-resposta de Bénard da Costa a Pires de Lima, com um mês de atraso por culpa do hiato temporal que circunda os limites geográficos do meu concelho.

«As premências de uma antigamente ministra

18.06.2008, João Bénard da Costa

Em artigo neste mesmo jornal (PÚBLICO, 6 de Junho de 2008) a ex-ministra da Cultura, Dra. Isabel Pires de Lima, juntou a sua voz a uma petição do Circuito Universitário de Cineclubismo do Porto, afirmando ser premente (sublinhado meu) a criação de um pólo de programação da Cinemateca no Porto.

Fosse ela apenas deputada, nada de estranho. Afinal de contas, é deputada pelo círculo eleitoral do Porto e fica sempre bem a quem o é parecer que defende os interesses da cidade que a elegeu. Acontece que, se, hoje, ela é deputada não o foi durante quase três anos, ou seja entre Maio de 2005 e Janeiro de 2008. Durante esse período, foi ministra da Cultura. Se achava "premente" a criação de tal "pólo", teve tempo e mais do que tempo para o criar, no uso estrito das suas competências enquanto titular da pasta da Cultura. Vir agora juntar o nome ao dos peticionários, reclamando ao seu sucessor o que ela própria não fez, é, no mínimo, posição deveras singular e pouco abonatória da sua capacidade executiva. Quem não foi capaz de fazer o que achava "premente" dever ser feito não tem qualquer autoridade para abrir a boca que ficou calada enquanto devia e podia falar. Diz ela que, como ministra da Cultura, defendeu publicamente o pólo a norte. Mesmo que tenha sido verdade, a um ministro cabe mais do que defender ideias. Cabe executá-las ou mandar executá-las. Não fez nem uma coisa nem outra e agora queixa-se. Mal dela.

Muito pior, contudo, é vir desculpar-se comigo que, director da Cinemateca Portuguesa, dependia dela e estava lá ou para lhe cumprir as determinações ou, quando com elas não concordasse, para lhe pedir a demissão. Um general a desculpar-se com oficial sob seu comando é sempre general que não merece o posto que tem.

Recordando a minha "reconhecida dimensão intelectual", cumprimento que não lhe posso devolver, a antiga ministra da Cultura acusa-me de muitos males, entre eles o de ter contribuído para a "estagnação da Cinemateca", "sem que haja coragem para dizer com todas as letras que 'o rei vai nu'".

Parece-me que ela é a última pessoa a ter autoridade para comentar cobardias alheias. Ministra durante dois anos e oito meses, teve dois anos e oito meses não só para se escandalizar com a nudez do rei, como para lhe pôr cobro, em nome de elementar decência. Não o fez. Ou porque não teve coragem para o fazer, ou porque não teve coragem para se opor a quem lhe impediu a baixa inclinação do gesto. Assim, das duas uma: ou o texto da deputada é uma autocrítica, à boa maneira da escola que a formou e informou, ou é dentada na mão do dono. Nem uma nem outra são práticas que se recomendem.

Recorda ela que eu fui nomeado director da Cinemateca em 1991. Essas nomeações revestem-se da forma de comissões de serviço e duram três anos, renováveis. Nomeado pelo Dr. Pedro Santana Lopes, fui por ele reconduzido em 1994, ao tempo em que ele era secretário de estado da Cultura do governo Cavaco. Em 1997, o Dr. Manuel Maria Carrilho, ministro da Cultura do governo Guterres, reconduziu-me mais uma vez, o que voltou a acontecer em 2000 (José Sasportes, ministro de Guterres) e em 2003 (o Dr. Pedro Roseta, como ministro de Durão Barroso). Três nomeações de governos PSD e outras tantas de governos PS. Para um "autista", como ela me chama, e sendo sabido "que a Cinemateca é de há muito propriedade de JBC", tanta distracção ou tanta persistência dificilmente se entendem, face ao diagnóstico da Dra. Isabel Pires de Lima. Menos se entende que, em 2006, tenha sido ela a manter-me em funções, com declarações públicas de confiança e que, a 29 de Janeiro de 2008, o seu último acto oficial (ironia do destino) tenha sido renovar-me a comissão de serviço por mais três anos. Menos de cinco meses antes do artigo em que me acusa de secar "todos os recursos humanos competentes que porventura teve ou tem", numa frase a que o advérbio "porventura" retira qualquer sentido. Ou seja, se eu hoje estou no cargo que ocupo, foi porque a Dr.ª Isabel Pires de Lima nele me reconduziu. Arrepende-se agora? É tarde, é muito tarde. Porque eu sou e ela foi. Com quase nula probabilidade de o voltar a ser. O "cavalo do poder" já não pára à porta dela.

Sobre a minha posição relativamente à petição do Porto, - "causa ocasional" do verrinoso artigo - já neste mesmo jornal disse o que tinha a dizer. Nunca disse - ao contrário do que, mentindo, a ex-ministra me acusa - que a Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema não tem "nada, mas mesmo nada a ver com isso". Nunca disse - ao contrário do que, mentindo, a ex-ministra me acusa - que a Cinemateca não deve ter qualquer intervenção no assunto. Disse e volto a dizer que não se justifica a criação de uma segunda cinemateca, como a Dra. Isabel Pires de Lima, em contradição pegada, no final do seu artigo parece concordar, ao reconhecer - cito-a - "que o país não tem dimensão nem geográfica, nem por certo patrimonial para criar uma segunda cinemateca". Disse e volto a dizer que a abertura de um espaço expositivo no Porto, em que se exponham filmes com critérios museográficos próprios de uma Cinemateca é algo de radicalmente diferente da criação de um "pólo de programação" que mostrasse em reprise os filmes já exibidos em Lisboa.

Apoio inteiramente, como já disse e repito, a constituição de um núcleo de exposição permanente (exposição permanente de filmes, entenda-se) no Porto, devidamente formalizado e dotado de todas as infra-estruturas necessárias para o efeito, dirigido e coordenado por pessoas competentes, que, no Porto, não faltam, com programação completamente autónoma da de Lisboa, mas contando sempre com a colaboração activa da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, quer para a cedência de cópias, quer para abonar contactos necessários com cinematecas estrangeiras, nossas colegas na FIAF, quer para apoio documental e informativo. Limites: apenas os que decorrem da defesa do património cinematográfico que à Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema cabe salvaguardar, quer os que decorrem de condicionalismos legais e do respeito pelos legítimos direitos dos autores ou detentores das cópias depositadas no nosso departamento de Arquivo Nacional de Imagens em Movimento (ANIM).

É em base semelhante que a Filmoteca Española - sediada em Madrid - colabora com as cinematecas de Barcelona, Valência, etc, que a Cinémathèque Française - sediada em Paris - colabora com as cinematecas de Toulouse, Lyon, etc. ou que a Cineteca Nazionale - sediada em Roma - colabora com as de Bolonha, Turim, Milão, etc., para me limitar aos países latinos.

Entre a posição que voltei a sumariar - e me parece excelente base para negociações futuras - e as posições que a Dra. Isabel Pires de Lima me atribui, há uma enorme diferença. A diferença entre uma posição demagógica e irresponsável, para recuperar como deputada a péssima imagem com que ficou a ministra, e uma posição reflectida ao longo de vários anos e de muitas parcerias com instituições do Porto, algumas bem-sucedidas - como as que seguiram basicamente a orientação que preconizo - outras menos bem-sucedidas, quando a Cinemateca programou de Lisboa para o Porto.

Não posso terminar sem responder à grave acusação de "autismo", que me dirige a pretérita ministra da Cultura. Será autismo programar cinco sessões diárias (seis aos sábados) com uma média de 60.000 espectadores por ano? Será autismo gerir uma colecção de mais de 20.000 títulos diferentes (em 1980, quando entrei para a Cinemateca, eram cerca de 1400) arquivada num dos melhores centros de conservação do mundo, que a Dra. Isabel Pires de Lima, enquanto ministra, nunca se dignou visitar? Será autismo facultar a investigadores e a universitários o acesso a cerca de 500 filmes diferentes por ano, para fins de estudo e conhecimento da colecção? Será autismo a abertura, em 2007, de uma nova frente na Cinemateca, especificamente destinada a espectadores infantis ou jovens, em iniciativa apoiada pelo Ministério da Educação, e que a Dra. Isabel Pires de Lima paulatinamente ignorou, enviando à inauguração o seu chefe de gabinete e jamais se interessando por ela?

Quanto ao "armazém" (como ela lhe chama) para depósito do arquivo fílmico da RTP, que me acusa de não ter mandado executar, recordo que o processo de edificação do novo módulo dos cofres para esse arquivo esteve a jazer nas gavetas dela durante quase três anos. Três meses bastaram ao actual titular da pasta para encerrar o processo e permitir, ainda este mês, a abertura do concurso de adjudicação da obra, que a Dra. Isabel Pires de Lima, em insólita aplicação do "simplex", protelou, por razões burocráticas, durante todo o tempo em que foi ministra.

É um facto que a acção da Cinemateca foi extraordinariamente dificultada ao tempo em que a Dr.ª Isabel Pires de Lima foi ministra. É um facto que a escassez da oferta de cinema é enorme no Porto e é ainda maior em quase todo o País. Mas, a menos que se desista da "película antiga" (deliciosa expressão) e se passe a projectar em digital (a ex-ministra nunca daria pela diferença) nenhuma culpa cabe à Cinemateca, que terá muitos pontos fracos, mas não esses para que a ex-ministra, tão tarde e a tão más horas, pareceu acordar, a fim de sacudir a água do capote e arranjar, no "vitalício" director da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, o "bode expiatório" com que ajustar contas que não são deste rosário. Meta-se com gente do seu tamanho e haja respeitinho por quem não tem nem idade, nem percurso profissional, nem posição social para gastar mais cera com tão ruim defunta. Director da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema »

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